domingo, 12 de janeiro de 2014




Caro senhor,

Sei perfeitamente como pensa, pois vi com os meus olhos e vivi de perto a experiência.
 
Qualquer farroupilha do continente que chegasse a terras de África, ingressava de imediato na classe dos senhores, via-se-lhe abrir o crédito, as portas do mando, o apoio das autoridades, uma lei permissiva.
Mandava, então, construir um armazém de distribuição, comprava uns tantos camiões, abria lojecas em diferentes sanzalas, contratava negros, a quem vigiava de perto, para a venda de toda a casta de quinquilharias, bebidas e o famoso peixe seco que revolvia as entranhas, só do cheiro.
Em sua casa possuía cozinheiro, lavadeiro, alfaiate, boys para os filhos, padeiros que o forneciam e comerciavam o pão, mecânicos de carro, ou carros, ao mesmo tempo choferes transportadores dos produtos de comércio fixo ou em mercados.
As notas entravam fartas, dando trabalho contá-las, ainda que coadjuvado pelos empregados.
Deslocando-se mais longe, instalava-se nos melhores hotéis, de mesas infindas em vastos átrios, carregadas de estranhos acepipes e petiscos, beluga do Cáspio, marisco fresco de Moçambique, laranjas e uvas da África do Sul, abacaxis do Brasil, etc, etc, além, como se espera, dos produtos autóctones, entre os quais posso citar, a título de exemplo, a carne de impala, o coração-de-boi, os cachos gigantescos de bananas perfumadas. E as bebidas, meu Deus, vindas das quatro partes do mundo, despertavam coragens ou ternuras, dependendo da pessoa que se é, na realidade, por detrás das máscaras do quotidiano, pois uns ficavam violentos e outros cantavam o fado choradinho.
Se aparecesse bolha na pele ou azia no estômago, tinha por si especialistas na capital ou no país vizinho ou em Londres ou Paris, caso o capricho seja mais exigente.
 
Compreendo que o paraíso o tenha deslumbrado, a si, que na terra de origem, sua ou de seus pais, andava, digamos, aos caídos.
O diabo foi o preto rebelar-se, o maldito, antes de convertido às boas razões capitalistas: o senhor e excelentíssima família viram-se, então, obrigados a regressar a penates.
Felizmente tiveram bom acolhimento, graças à generosidade do democrata Soares, que lhe proporcionava emprego, hotel, casa, acomodação sem sobressaltos, por cima da miséria de quantos cá viviam.
E não é de estranhar que mantenha os hábitos do antigamente e olhe a malta da terra bem diferente de si.
 
Aconselho-o, porém, a refrear um pouco o olhar de negreiro, porque o historial, aqui, é outro, não devendo confiar na actual inércia generalizada de um povo que se encontra em coma de cobardia. Tudo tem limites, sabe, e, embora apoiado pela Europa da agiotagem e venais que ela recruta, uma faúlha pode acontecer. Então, sim, fica o caldo entornado, segundo as sábias palavras de um conhecido serventuário traidor.
 
Precate-se, caro senhor, e evite a provocação constante, o pisar sem dó destes desamparados, que estão à beira da exaustão.
 
Não se fie na matilha que o rodeia ou na guarda pretoriana, que essa gente, pressentindo um dia que há força do outro lado, muda-se num ápice, com armas e bagagens, para arvorar o patriotismo de sempre que entretanto esqueceram e apresentar provas insofismáveis de honestidade, observância rigorosa da justiça, amor à democracia, tal como aconteceu dias depois do 25 de Abril.
 
A minha avozinha disse-me imensas vezes: mais vale prevenir que remediar.
E quem nos avisa, nosso amigo é.
 
Um com-patriota.

 

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