INTRODUÇÃO
Agradecendo,
de antemão, que me corrijam, quando me engano ou esqueço facto relevante, creio
oportuno recordar um pouquinho da nossa história recente.
CAPÍTULO
I
Tido
por vitorioso o levantamento de Abril, atravessou a fronteira, açodado, um
senhor que acabara de fundar, na Alemanha e com dinheiros alemães, mais um dos
muitos partidos socialistas que, com palavras apetecíveis ao ouvido e alguns
rebuçadinhos, têm por missão aquietar um povo zangado, capitalizar os votos dos
muitos crédulos e gerir, posteriormente, os negócios da casa, observando a
formulação de Lampedusa, que é preciso mudar alguma coisa para que tudo
continue na mesma.
O
quê?
A
perpetuação de um sistema onde se enaltece a livre iniciativa, o génio
empreendedor, a empresa criadora única de riqueza, os gestores multiplicadores
de lucros, etc., etc., e, causa, efeito e objectivo de tudo, o direito a deitar
a mão ao que outros produzam, condescendendo-se, sim, em que possam receber o
necessário para se manterem em pé e continuarem a produzir.
Esta
justíssima repartição tem permitido, através dos tempos, que uma mão-cheia,
apenas, goze todos os prazeres na terra e, mais tarde, no céu, já que lhes está
assegurado, à hora da morte, um santo padre a absolvê-los dos seus pecados.
Nem
tanto era preciso, já que Monsenhor Escrivá, fundador da Opus Dei, beatificado
e a caminho da santidade, numa inspiração divina, considerou esses poucos os
eleitos de Deus.
Como
sistema bem pensado, acrescenta-se uma válvula de escape: o nobre e sagrado
direito de dizer mal de qualquer um, desde que não se ponham em causa o bom
nome, a honra, a dignidade, etc., etc., isto é, a impunidade de quem manda e
rouba.
CAPÍTULO
II
Entrado
no país, o excelente senhor, acarinhado e louvado fora, para que encarnasse,
ele e só ele, a oposição ao fascismo, trazia, por missão, confundir e dividir
os capitães, proclamar a reconciliação nacional, quebrar a unidade dos
trabalhadores, arrefecer as excessivas alegrias da rua e, juntando os
pedacinhos dispersos do reaccionarismo, embrulhou tudo bem embrulhado, tal como
dizia o puríssimo cristão Francisco Franco, referindo-se ao que legava à
Espanha: está atado e bem atado.
Incansável,
o “pai da democracia”, como depois se disse, apareceu em jornais, rádios,
televisão, comícios, manifestações, em defesa da liberdade de opinião, de
reunião, de associação, etc., etc., diabolizando os comunistas satânicos,
defensores, imagine-se, da terra a quem a trabalha, dos trabalhadores gerindo
os grandes meios de produção, da educação e da saúde gratuitas, para todos.
E
criou-se uma UGT que, pingue de recursos, serviu para atear fogos entre quem
trabalha, esperando-se que saísse irremediavelmente queimada a central sindical
CGTP, herança da luta antifascista, da clandestinidade, mas muito em sintonia
com o nefando projecto e, logo, execravelmente unitária, monolítica, despótica,
etc., etc., correia de transmissão dos terrivelmente sinistros comunistas. Impunha-se
“quebrar-lhes a espinha” a uns e a outros.
Com
lábia, manha, habilidade, intriga e dinheirinho ressumante do estrangeiro, via
França, Holanda e anexos, prosseguiu ao que vinha: gestão dos negócios públicos
e privados, numa promiscuidade legalizável e bem aceite, que entrasse e
melhorasse pelo futuro.
Ao
olhar-se o êxito, é bom não esquecer a preciosa ajuda do mui nobre Senhor
Embaixador Americano, Carlucci de nome, ex-director da CIA, benemérita
organização de espionagem, célebre em sabotagens, atentados, mortes, golpes ditaturiais,
que o mundo conheceu, sobretudo, depois da contra-revolução no Chile e
assassinato de Allende, socialista verdadeiro, que foi preciso abater.
CAPÍTULO
III
O
nosso protagonista dava, de facto, garantias, todas, a uma América que, na
altura, à palavra socialismo, ainda se arrepiava.
Já
no regime de opressão anterior o senhor dera boas provas, dividindo e desavindo
a oposição, fazendo campo à parte.
Em
virtude disso fora cruelmente castigado com o exílio em S. Tomé a comer lagosta,
enquanto os progressistas do país eram perseguidos, presos, torturados, mortos
e Cunhal cumpria onze anos de incomunicabilidade, na prisão, que mais seriam,
se ele e os camaradas não inventassem maneira de fugir de Penhche.
Finda
a insuportável expatriação logo, o senhor emerge fugazmente em Portugal, Nova
Iorque, Estrasburgo, aqui e acolá, para vir a sofrer um novo e cruciante exílio
em França, com trabalhos forçados nas peroratas de Rennes, tarefas ingratas de
organização de amigos e recolha de fundos de partes várias, noites mal dormidas
em hotéis confortáveis.
Como
é possível a vida encarniçar-se, assim, contra alguém que, sacrificando tudo,
se bate, bateu e baterá pela felicidade do seu povo?
E
desinteressadamente, generosamente, sem prosápias, numa pureza e elevação de
ideais que bem merece o respeito e admiração em vida e que seja consagrado na
morte, em repouso eterno, para exemplo dos vindouros, no Panteão dos Grandes,
lado a lado com o Senhor General Carmona.
CAPÍTULO
IV
Os
tubarões do regime deposto, tinham, entretanto, enchido as malas com os seus
haveres e bens alheios, buscando tranquilidade e merecido repouso por praias de
Copacabana, Miami e outras.
Por
cá, haviam deixado ficar alguns dos empregados que, falando mansinho,
docemente, iam espreitando oportunidades, corrompendo morais frágeis, alargando
redes de interesses para que seus patrões, no regresso, encontrassem os palacetes
impecáveis, tudo afinadinho para voltarem a exercer os seus talentos,
reconstruíndo e ampliando os antigos impérios.
Sabiam
tais zeladores que mimos e atenções do género, são, no final, recompensados com
poltronas confortáveis, donde se pode ver o mundo cor-de-rosa, a querida
família felicíssima, as suas criancinhas predestinadas, ao nascer, à sucessão
dos papás, no mando e nos proventos.
Isto,
de modo muito mais inteligente e sossegador para todos, lordes e mordomos, pois
a abençoada democracia electiva, orgulhosamente implantada, suscitaria, quando
muito, pequeníssimas e sanáveis invejas paroquiais, mas nunca dissidências
perigosas.
Como
é por demais sabido, este sistema de governação não é instrumento útil do capitalismo
predador. É, sim, o seguríssimo caminho em direcção ao melhor dos mundos
possíveis.
Fim
da História. Ver Fukuyama.
Esclareçamos,
de vez, o que se chama bipartidarismo:
-
Enquanto tu, meu adversário, mas bom amigalhaço, estiveres no poder e eu,
descansado em gabinetes atapetados das instituições públicas e privadas, espero
que me faças leis a gosto, injectes muita massa nos meus cofres, redecores a
casa, renoves a frota, agora tuas, agora, e amanhã minhas.
-
Podes contar, desde já, com o meu sincero reconhecimento, que provarei, depois,
de forma generosa, retribuindo-te mais e melhor, ao chegar a minha vez.
Perguntar-se-á:
-
E os que pagam o pato e a palhaçada?
Resposta:
-
Olham apatetados, não percebem nada, apertam o cinto e haverá, mesmo, quem
aplauda, entusiasmado, por se rever naquilo e naqueles que vêem e gostavam de
ter e ser.
Mais
ou menos como pobres maltrapilhos, apinhados à porta das grandes galas, aplaudindo
a gente fina que chega em limusinas, toda vestidinha a rigor, eles, exibindo
senhoras a rabejar sedas, elas, dobrando-se ao peso dos diamantes e amor eterno
que nutrem pelos seus queridos.
Por
vezes, mesmo, é possível lobrigar, a espreitar do umbigo das encantadoras damas
um cãozinho minúsculo, de raça estranha, muito parecido a um colibri, no
tamanho.
Um
verdadeiro deleite!
APÊNDICE
As festanças são para continuar e não pararão jamais, que o requinte exige sempre mais e melhor, a não ser que o pobre diabo, capacho que todos pisam, se arranque do torpor, agarre essa malta pelos colarinhos, sente-os no banco dos réus por roubo, corrupção, abuso do poder, tráfico de influências, gestão danosa, os múltiplos crimes que a justiça prevê, mas não vê, tão ocupada está em castigar os fracos.
Pessoalmente,
não defendo a guilhotina, porque seria pôr-me ao nível dos desfrutadores.
Mas
gostaria de ver esses tipinhos a viver, como muita gente vive: salário mínimo.
Parece-me
um veredicto sensato e gratificante, pois as criaturas teriam uma nova
oportunidade de conhecer a vida, alargar experiência, saber, horizontes.
Eu
diria, então, como o filósofo Ulrich:
- Ai, aguenta, aguenta!
Só
que pluralizaria.
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