domingo, 12 de janeiro de 2014

           No registo tinha por nome António, a que se seguiam Silva e Mendes, pecha que se estendera, epidemicamente, aos variados documentos que acompanham um cidadão em vida, provando que existe, vive e persiste em viver.
           Na aldeia, contudo, conheciam-no  por Antoninho,  Antoninho apenas, dado o seu evidente apoucamento, mas, também, uma certa familiaridade e aceitação de quem, não tendo maldade, aturava todas as brincadeiras dos seus iguais.
           Porque a diferença entre ele e conterrâneos não era grande.
           O bom do Antoninho babava-se um pouco mais e o riso, em rictus permanente, impedia-lhe o ar sisudo que os patrícios assumiam nos momentos de grande solenidade.
           Tirando isso, o grau de inteligência, os conhecimentos, o comportamento imprevisível eram idênticos, mais coisa menos coisa.
           A prova provada estava à vista nos dias previstos de grande festejo, que todos festejavam, sem excepção, ou na compra do produto anunciado, que todos compravam, sem excepção, e no respeito submisso e louvor sem limites a quem era suposto respeitar e louvar.
           Não me parece exagero falar de sintonia perfeita, nesta concordância entre os membros da comunidade.
           E facilmente se entende que Antoninho e todos os demais se plantassem em bicha, nas datas aprazadas, junto do edifício da escola, no propósito bem sério e nobre de votar.
           Mais: todos votavam alegremente no mesmo charlatão que lhes dissera que faria leite e mel nesta vida e um lugar no paraíso, após a morte.
           Que a aldeia não tivesse ruas e só buracos, que o médico distasse dos doentes uma boa trintena de quilómetros, que os mortos se sentissem apertados no cemitério, cada vez mais acanhado, nada disso importava, tendo em conta, como todos tinham, os vivos e os mortos, que, graças ao saber, prestidigitação e genialidade dos senhores da freguesia, as benesses iriam brevemente chover e a idade de oiro já se via ao alcance da mão.
           Não se diga, tão-pouco, que a terrinha era atrasada, já que nela florescia, em plena resplendência, uma democracia electiva, sempre no auge das suas graças e virtudes.
           Dada esta explicação, compreender-se-á o que havia de insólito, perturbante, no regresso do Zé Mendes da estranja, onde vive e moreja metade ou mais da população. Nada do outro mundo, portanto. A sangria é normal, encara-se com naturalidade, aconselha-se mesmo, porque, onde se nasce reina o desemprego, a  miséria e o futuro que nunca chega.
           Há quem possua courela, esfolando-se de manhã à noite e, assim, conseguindo uma couvinha rija ou um nabo fibroso.
           Mas quer homem quer mulher não podem negar a natureza omnívora, passando a herbívoros, sob perigo de chanfrarem completamente.
           Vejam-se as vacas, que a negociata converteu em carnívoras, com os restos das suas irmãs mortas. Piraram: desataram aos esticões e acabaram aos tombos.
           Imagine-se o inimaginável espectáculo, em dia de eleições ou ida à terra de figura importante, com os indígenas do sítio às cornadas uns nos outros ou na ínclita figura,  acabando afogados na própria porcaria
           E, ainda que atinassem com o buraco das urnas, era impossível garantir o voto correspondente ao que lhes fora indicado pelo senhor cura ou personagem de relevo.
           Resumindo: a democracia conheceria graves riscos.
           Ora, o Zé Mendes regressara e nada haveria a acrescentar, se o desgraçado não trouxesse no crânio, ainda peludo, apesar da idade, ideias esquisitas, não detectadas na fronteira.
           O facto de ter ideias já era em si bastante estranho, mas, enfim, tolerável. O pior era ter-lhe dado para partilhar o que pensava com os seus vizinhos.
           Exemplo:
           - Ninguém deve explorar ninguém.
           Ponham-se na pele das pessoas de respeito e ordem e pressintam, apenas, o choque, a confusão, o desatino que a pequena aldeia viveu de súbito.
           Logo altas instâncias da freguesia se reuniram com o senhor pároco a fim de condenar, inapelavelmente, o subversivo, o hereje.
           Este, réprobo, fez-se de novas e, com palavras, desenhos, gestos, insistiu em explicar, pacientemente, que, sendo os homens iguais, como vem nos livros, não se encontra razão para que uns labutem de sol a sol e não consigam comer o que a fome lhes pede, enquanto outros, sem nada fazer, que só mandam bocas, comem à farta, bebem do melhor e gozam à grande, dentro e fora do país.
           O tasqueiro objectou e bem, a acreditar nos compêndios sobre a matéria, que esses têm dinheiro, e não devem justificar a origem, se foi roubado ou não, se foi herdado de quem roubou outros antes.
           Num meio amplo, citadino, a ameaça esconjura-se, neutraliza-se, bastando travar o acesso a jornais e televisões.
           Que o direito a opinar ninguém o nega, mas ideias desta perigosidade, só em casa, no íntimo, na casa de banho, enquanto se alivia.
           Em meio pequeno, o problema é bicudo, porque faltando uma difusão diferente, tudo se processa na oralidade, desde o chamar as cabras a descompor a comadre.
           Teve o senhor prior a ideia de promover reunião alargada, quase ecuménica, englobando tasqueiro, presidente da Junta e polícia reformado, natural da terra, homem observante dos interesses de quem manda.
           Duas horas de discussão intensa. Conclusão? Nenhuma, tolhidos pelo diabo da liberdade de opinião, essência da democracia, que, como tubo de escape, dá direito de dizer mal de quem se entenda, desde que o visado não tenha bom dinheiro, que, caso contrário, fica-se com um ou mais advogados à perna, que fazem a vida negra, porque estes profissionais amam, acima de tudo, o direito e a justiça.
           Ora, na terriola, só a caixa de esmolas rendia magramente e era pertença inalienável do senhor pároco, que se afirmava sem posses sequer para pintar a fachada da igreja da Senhora da Agonia, padroeira da zona.
           Deste modo, a única hipótese viável afigurou-se ser a de deixar o Zé zurrar quanto quisesse, na esperança que se cansasse. Para fazer o ponto da situação, como sói dizer-se, marcaram, no entanto, uma nova reunião daí a um mês.
           Decisão unânime, com  voto expresso de todos os co-presidentes da comissão de salvação pública, os três, porque sabiam, um pela prática da tropa, os dois restantes por ilustração, que neste país nunca faltarão generais, ainda que os soldados não existam.
          Trinta dias depois, uma trágica constatação: o Zé Mendes, o hereje, não calava a matraca, tornando-se justificado accionar o plano B, que o atacava na vida pessoal, inventando-lhe podres, desonrando-lhe a família, sussurrando  às velhinhas alcoviteiras, em confessionário ou encontros casuais, que o Zé Mendes recebera lingotes de oiro, de Moscovo.
           A comadre Martinha, amiga, desde catraia, da comadre Zefa, a mulher do Zé, garantiu, pela alminha dos que Deus lá tem, que a Zefa, muito sua amiga, compusera o casita térrea com umas notinhas de francos, granjeadas em trabalhos de caboqueiro, em Franças e Araganças.
          Aliás, desconhecia-se, por lá, o que era Moscovo, onde estava Moscovo, muito embora se supusesse ser coisa do inferno.
         Registando, mais tarde, novo fracasso nos objectivos em vista, os zelosos defensores dos poderes estabelecidos desencadearam o plano C, o que é notável, porque se desconhecia, ainda, as futuras estratégias governamentais. Na boca deles, o Zé era leproso e ai do pobre incauto que se lhe chegasse.
          Foi um azar, contudo, porque o homem tinha ido pescar, dias antes, com dois parceiros e aproveitara a tepidez do rio para banhar-se em pelota e os companheiros nada notaram, a não ser que o Zé estava bem servido, capaz para a mulher ou qualquer um ou uma mais precisados.
          Em desespero de causa, os co-presidentes agarraram a sugestão do pároco, senhor de muita inventiva:  o Antoninho era uma praga de Deus.
          É chegada a altura de esclarecer que o pai do Antoninho era o Zé Mendes, que emigrara em atenção ao filho, um tanto poucachinho, no intuito de o deixar um tanto amparado, quando a morte os levasse, a ele e à mulher.
          E isso, sim, foi um autêntico achado: pois, a partir de então, a gente da terra, à vista do Zé, mudava de caminho, evitando o cruzar-se com ele, porquanto quem se dá com amaldiçoados incorre em maldição, como reza a doutrina da Santa Madre Igreja.
          Quem viveu o inferno na terra pode arriscar-se à eternidade do Satanás?
 

 

 

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