domingo, 2 de fevereiro de 2014


Caro senhor palrador
 
Sei que vendeu a alma ao diabo, comprometendo-se a observar rigorosamente o panglossismo e a defender por onde passa que este é o melhor dos mundos possíveis e não há alternativa.
 
Dir-lhe-ei, contudo, que carece de originalidade, pois, há muitos anos, andava o senhor de fraldas, ouvi isso ao grande pai da democracia, pouco depois de se ter contratualizado com o, então, embaixador americano Carlucci.
 
Mas, num rasgo optimista que, por vezes, me acontece, esperançado que seja capaz de rasgar contratos com os seus mandantes, ofereço-me a ciceroná-lo por uma casa de discos, onde podemos encontrar música ligeira de alguns anos atrás.
 
Como vê, nenhuma exigência de puxar pela cabeça e eu gostaria, apenas, que escutasse canções italianas ou francesas ou espanholas ou portuguesas desses tempos.
 
Certamente dar-se-á conta de que, nessa altura, sobravam, ainda, uns restos de gosto nacional e o mercado único anglo-americano tinha muito trabalho pela frente.
 
Há, sim, senhor, individualidade, personalidade, criatividade, variedade, riqueza.
 
Se não ficar convencido, trá-lo-ei a minha casa e verá amostras de filmes europeus de época, portugueses, espanhóis, franceses, italianos, polacos, checos, russos, etc.
 
Não tenho a menor dúvida de que se aperceberá da miséria mental a que chegámos.
 
No caso me consiga ainda aturar, falar-lhe-ei de Ary, Lorca, Éluard, Aragon, Vittorini, Ehrenburg...
 
Aqui, poderá objectar-me com Saramago, Lobo Antunes e outros.
 
A jogada é forte, concordo, e devo confessar que eu próprio não entendo o fenómeno, mas também lhe responderei que nenhum deles se sentia ou sente bem neste apodrecimento geral e isto falando, apenas, dos dois primeiros.
 
Já percebeu, agora, que o descalabro, além de económico e social, é também cultural e mental.
 
Fazendo votos que assim seja,
 
O com-patriota.

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