quinta-feira, 3 de abril de 2014


Confesso estar vivendo acima das possibilidades.
Sou contínuo de segunda na portaria do Ministério, onde vejo chegar o senhor Ministro e Secretários que engraçaram comigo, sabe-se lá porquê, pois, depois dos bons-dias, não deixam de meter-se com o meu nariz, que, dizem eles, herdei de um avô judeu.

O vencimento é pouco, descontos feitos, sobretudo agora, em que são muitas as alcavalas, taxas, sobretaxas e sobre-sobretaxas.
Mantinha-me, ainda há pouco, na casinha de meus pais, felizmente em vida, mais os pais dos meus pais, os meus dois irmãos e um rafeiro adoptado.

Apertadinhos, é certo, mas a casa boa, com quarto de banho e tudo.
Difícil, só à noite, já que para dormir, é necessário ajeitarmo-nos um pouco, uns para baixo outros para cima. O espaço vital é, de facto, exíguo.

Tenho leituras, o décimo segundo ano, ou nunca seria digno funcionário do Estado.
Um dia, estando a ver os barquinhos no lago do Campo Grande, tão desajeitado fui ao endireitar-me de repente que dei um safanão valente na pequena que espreitava a diversão por detrás do meu ombro.

Desfiz-me em desculpas, sem dúvida, e, preso dos seus olhos pestanudos, fui aguentando a conversa, a ponto de acompanhá-la quando regressou a casa.
Combinámos outros encontros, aproveitando os domingos livres que ambos tínhamos.

E a confiança aumentou, mas, ao cabo de algum tempo, aumentou também a barriga da já minha namorada.
Decidimos, então, juntar trapinhos.

Andámos os dois à procura de sítio, mas os preços eram tão incomportáveis que nem alugar um quartinho podíamos.
O tempo começava a escassear, que, dentro em pouco, os patrões dela notariam que um novo cidadão ia chegar.

Fiz a via-sacra das vitrinas das imobiliárias, mais os anúncios dos jornais e, a uma sugestão de amigo, sabedor da vida, abordei o meu chefe, e pedi-lhe que certificasse a minha idoneidade física, moral, profissional e financeira.
Quis a sorte tê-lo apanhado de feição e, depois, de papel em punho, timbrado, assinado, chancelado, irrompi na Caixa Geral de Depósitos.

Não faltaram complicações e delongas, mas, ao cabo de algum tempo, foi-me concedido empréstimo que me abriu a porta de um cochicho em Camarate, onde vivemos, eu e a cara-metade e um catraio, que me dá cabo da cabeça.
Tornei-me, assim, proprietário, ou, como afirma o governo, meti-me em cavalarias altas, tão altas que andarei a pagar, a vida inteira, um T1, que acabará por rondar o preço de uma casa a sério, se eu tivesse, de início, algum dinheiro amealhado.

Se o dinheiro atrai dinheiro, a pobreza atrai pobreza e exploração.
Mas sou proprietário, com IMI pago e tudo.

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