domingo, 12 de janeiro de 2014


            Ao genérico apressado da milionésima telenovela, seguem-se os ponteiros do relógio inexorável. Ouve-se, então, algazarra enorme que lembra as trombetas de anjos e o céu televisivo escancara-se, revelando, em seu esplendor, o papagaio de serviço.
            - O grande derby, por que o país anseia, é às 20 horas, seguido, transmitido, comentado pelo nosso colega e assessores e demais amigos.
            E um nome ecoa de um arguto estratega de bancada, perito em 4-3-2 com libero, enérgico inovador de terminologias desportivas.
            Aparece, depois, a criatura, que começa uma análise sucinta de três horas.
            Diz-se e diga-se derby, não jogo, desafio, encontro ou qualquer outra vulgaridade do vernáculo arquivado entre velharias.
            Passado um tempo, os estimados e agradecidos telespectadores ficam a conhecer expectativas das equipas, constituição, táctica, estratégia, técnica, presenças, ausências, lesões, recuperações, treinadores, auxiliares, suplentes, contratações, transferências, repercussões aquém e além-fronteiras.
            O momentoso evento parece igual aos outros de ontem, de anteontem, de transanteotem e dos dias que para trás ficaram e dos dias que adiante virão.
            A tonitruância explica-se com a necessidade de manter em brasa um pagode que nada mais tem, nem entende mais nada.
            Julga-se que a artimanha foi inventada pelos romanos, praticada no fascismo, explorada à exaustão na democracia de pacotilha.
            Esquecem-se, assim, informações sobre economia em baixa, dívida astronómica, défice inabalável, desemprego maremótico e crise e crise e crise.
            Mas sosseguem, portugueses, que a resolução está à vista, graças ao ditame único dos sábios da casa, com a redução das despesas, a racionalização dos gastos, a contenção dos salários, a flexibilidade laboral, os incentivos às empresas, os subsídios à exportação, a diminuição do IRC, o aumento dos impostos sobre o trabalho e pensões.
            Sacrifícios a somar à penúria de anos seguidos, é certo. Porém, consolidadas as finanças, caramba, o maná divino cairá do céu e a vida de fartura dar-nos-á um paraíso na terra e, mais tarde, no reino celeste, ámen.
            Louvado seja Deus! – repetem patrões e executivos, religiosos, e muito, normalmente aos domingos, à hora da missa.
            E escute-se  o cândido, ou vendido, apresentador, que exulta com os muitos milhões da compra de uma empresa por outra, com subida de acções, futurando múltiplas transações, fusões, concentrações, especulações bolsistas. Dir-se-ia que entrou em transe, ao falar dos lucros fabulosos confessados do último trimestre, mais 30% sobre os 30% do trimestre passado, sobre os 30% do trimestre anterior e assim por diante, a bem da nação, a deles.
            Às claras e sem ocultação de dados, os ganhos soam, a riqueza alardeia, o desprezo não disfarça. São carros, palácios, iates, propriedades várias.
            Sem dúvida que quem não está no seu papel somos nós, os resilientes, os que tudo aguentam, acobardados, bêbados de copos e futebóis.
            E como o burro consente, em vez de uma albarda, leva duas ou três. 
            E a voz televisiva vem de volta, com futebol ainda e eventos menores, igualmente importantes. Seguem-se, depois, crimes, desastres, manifestações de fé rastejando no lajedo e futebol ainda, entremeados com desenvolvimentos, testemunhas oculares, opiniões de especialistas e, por vezes, coisas do arco-da-velha que só acontecem na mítica América – um cavalo dançarino, um cão que dá traques, uma ursa panda que pariu um ursinho.
            Tudo um espanto...!
            É este o pasto em que refocilamos e temos à farta. Com telenovelas de manhã à noite, bate-papos de coscuvilheiras e/ou coscuvilheiros, exibições de cantores repimba, concursos idiotas de advinhação de preços, misses em pelota, uma vasta panóplia de embrutecimento programado, que pagamos, bem caro, monetariamente, culturalmente, mentalmente.
           Conteúdo reles, falar soez, representação medonha, alegria de alarve, entusiasmo boçal.
            Acrescente-se, para mais, a contribuição da escola, a que falta pedagogia séria e está asfixiada pela falta de meios, dado que os centros de desinformação sabem como se domina o mundo.
            O investimento mais rendoso é, de facto, a estupidificação dos povos. A partir daí, tudo é possível.
 
 

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