Ao genérico apressado da milionésima
telenovela, seguem-se os ponteiros do relógio inexorável. Ouve-se, então, algazarra
enorme que lembra as trombetas de anjos e o céu televisivo escancara-se,
revelando, em seu esplendor, o papagaio de serviço.
- O grande derby, por que o
país anseia, é às 20 horas, seguido, transmitido, comentado pelo nosso colega e
assessores e demais amigos.
E um nome ecoa de um arguto
estratega de bancada, perito em 4-3-2 com libero, enérgico inovador de
terminologias desportivas.
Aparece, depois, a criatura, que
começa uma análise sucinta de três horas.
Diz-se e diga-se derby, não jogo, desafio, encontro ou
qualquer outra vulgaridade do vernáculo arquivado entre velharias.
Passado um tempo, os estimados e
agradecidos telespectadores ficam a conhecer expectativas das equipas, constituição,
táctica, estratégia, técnica, presenças, ausências, lesões, recuperações,
treinadores, auxiliares, suplentes, contratações, transferências, repercussões
aquém e além-fronteiras.
O momentoso evento parece igual aos outros
de ontem, de anteontem, de transanteotem e dos dias que para trás ficaram e dos
dias que adiante virão.
A tonitruância explica-se com a
necessidade de manter em brasa um pagode que nada mais tem, nem entende mais
nada.
Julga-se que a artimanha foi inventada
pelos romanos, praticada no fascismo, explorada à exaustão na democracia de
pacotilha.
Esquecem-se, assim, informações
sobre economia em baixa, dívida astronómica, défice inabalável, desemprego
maremótico e crise e crise e crise.
Mas sosseguem,
portugueses, que a resolução está à vista, graças ao ditame único dos sábios da
casa, com a redução das despesas, a racionalização dos gastos, a contenção dos
salários, a flexibilidade laboral, os incentivos às empresas, os subsídios à
exportação, a diminuição do IRC, o aumento dos impostos sobre o trabalho e
pensões.
Sacrifícios a somar à penúria de
anos seguidos, é certo. Porém, consolidadas as finanças, caramba, o maná divino
cairá do céu e a vida de fartura dar-nos-á um paraíso na terra e, mais tarde,
no reino celeste, ámen.
Louvado seja Deus! – repetem patrões
e executivos, religiosos, e muito, normalmente aos domingos, à hora da missa.
E escute-se o cândido, ou vendido, apresentador, que exulta
com os muitos milhões da compra de uma empresa por outra, com subida de acções,
futurando múltiplas transações, fusões, concentrações, especulações bolsistas.
Dir-se-ia que entrou em transe, ao falar dos lucros fabulosos confessados do
último trimestre, mais 30% sobre os 30% do trimestre passado, sobre os 30% do
trimestre anterior e assim por diante, a bem da nação, a deles.
Às claras e sem ocultação de dados,
os ganhos soam, a riqueza alardeia, o desprezo não disfarça. São carros,
palácios, iates, propriedades várias.
Sem dúvida que quem não está no seu
papel somos nós, os resilientes, os que tudo aguentam, acobardados, bêbados de
copos e futebóis.
E
como o burro consente, em vez de uma albarda, leva duas ou três.
E a voz televisiva vem de volta, com
futebol ainda e eventos menores, igualmente importantes. Seguem-se, depois, crimes,
desastres, manifestações de fé rastejando no lajedo e futebol ainda, entremeados
com desenvolvimentos, testemunhas oculares, opiniões de especialistas e, por
vezes, coisas do arco-da-velha que só acontecem na mítica América – um cavalo
dançarino, um cão que dá traques, uma ursa panda que pariu um ursinho.
Tudo um espanto...!
É este o pasto em que refocilamos e
temos à farta. Com telenovelas de manhã à noite, bate-papos de coscuvilheiras e/ou
coscuvilheiros, exibições de cantores repimba, concursos idiotas de advinhação de
preços, misses em pelota, uma vasta panóplia de embrutecimento programado, que
pagamos, bem caro, monetariamente, culturalmente, mentalmente.
Conteúdo
reles, falar soez, representação medonha, alegria de alarve, entusiasmo boçal.
Acrescente-se, para mais, a
contribuição da escola, a que falta pedagogia séria e está asfixiada pela falta
de meios, dado que os centros de desinformação sabem como se domina o mundo.
O investimento mais rendoso é, de
facto, a estupidificação dos povos. A partir daí, tudo é possível.
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