No registo tinha
por nome António, a que se seguiam Silva e Mendes, pecha que se estendera,
epidemicamente, aos variados documentos que acompanham um cidadão em vida,
provando que existe, vive e persiste em viver.
Na aldeia,
contudo, conheciam-no por Antoninho, Antoninho apenas, dado o seu evidente
apoucamento, mas, também, uma certa familiaridade e aceitação de quem, não
tendo maldade, aturava todas as brincadeiras dos seus iguais.
Porque a
diferença entre ele e conterrâneos não era grande.
O bom do
Antoninho babava-se um pouco mais e o riso, em rictus permanente, impedia-lhe o
ar sisudo que os patrícios assumiam nos momentos de grande solenidade.
Tirando
isso, o grau de inteligência, os conhecimentos, o comportamento imprevisível
eram idênticos, mais coisa menos coisa.
A prova
provada estava à vista nos dias previstos de grande festejo, que todos
festejavam, sem excepção, ou na compra do produto anunciado, que todos compravam,
sem excepção, e no respeito submisso e louvor sem limites a quem era suposto respeitar
e louvar.
Não me
parece exagero falar de sintonia perfeita, nesta concordância entre os membros
da comunidade.
E facilmente
se entende que Antoninho e todos os demais se plantassem em bicha, nas datas
aprazadas, junto do edifício da escola, no propósito bem sério e nobre de
votar.
Mais:
todos votavam alegremente no mesmo charlatão que lhes dissera que faria leite e
mel nesta vida e um lugar no paraíso, após a morte.
Que a
aldeia não tivesse ruas e só buracos, que o médico distasse dos doentes uma boa
trintena de quilómetros, que os mortos se sentissem apertados no cemitério,
cada vez mais acanhado, nada disso importava, tendo em conta, como todos
tinham, os vivos e os mortos, que, graças ao saber, prestidigitação e genialidade
dos senhores da freguesia, as benesses iriam brevemente chover e a idade de
oiro já se via ao alcance da mão.
Não se
diga, tão-pouco, que a terrinha era atrasada, já que nela florescia, em plena resplendência,
uma democracia electiva, sempre no auge das suas graças e virtudes.
Dada esta
explicação, compreender-se-á o que havia de insólito, perturbante, no regresso
do Zé Mendes da estranja, onde vive e moreja metade ou mais da população. Nada
do outro mundo, portanto. A sangria é normal, encara-se com naturalidade,
aconselha-se mesmo, porque, onde se nasce reina o desemprego, a miséria e o futuro que nunca chega.
Há quem
possua courela, esfolando-se de manhã à noite e, assim, conseguindo uma
couvinha rija ou um nabo fibroso.
Mas quer
homem quer mulher não podem negar a natureza omnívora, passando a herbívoros,
sob perigo de chanfrarem completamente.
Vejam-se
as vacas, que a negociata converteu em carnívoras, com os restos das suas irmãs
mortas. Piraram: desataram aos esticões e acabaram aos tombos.
Imagine-se
o inimaginável espectáculo, em dia de eleições ou ida à terra de figura
importante, com os indígenas do sítio às cornadas uns nos outros ou na ínclita
figura, acabando afogados na própria
porcaria
E, ainda
que atinassem com o buraco das urnas, era impossível garantir o voto
correspondente ao que lhes fora indicado pelo senhor cura ou personagem de
relevo.
Resumindo:
a democracia conheceria graves riscos.
Ora, o
Zé Mendes regressara e nada haveria a acrescentar, se o desgraçado não trouxesse
no crânio, ainda peludo, apesar da idade, ideias esquisitas, não detectadas na
fronteira.
O facto
de ter ideias já era em si bastante estranho, mas, enfim, tolerável. O pior era
ter-lhe dado para partilhar o que pensava com os seus vizinhos.
Exemplo:
-
Ninguém deve explorar ninguém.
Ponham-se
na pele das pessoas de respeito e ordem e pressintam, apenas, o choque, a
confusão, o desatino que a pequena aldeia viveu de súbito.
Logo
altas instâncias da freguesia se reuniram com o senhor pároco a fim de condenar,
inapelavelmente, o subversivo, o hereje.
Este, réprobo,
fez-se de novas e, com palavras, desenhos, gestos, insistiu em explicar,
pacientemente, que, sendo os homens iguais, como vem nos livros, não se
encontra razão para que uns labutem de sol a sol e não consigam comer o que a
fome lhes pede, enquanto outros, sem nada fazer, que só mandam bocas, comem à
farta, bebem do melhor e gozam à grande, dentro e fora do país.
O
tasqueiro objectou e bem, a acreditar nos compêndios sobre a matéria, que esses
têm dinheiro, e não devem justificar a origem, se foi roubado ou não, se foi
herdado de quem roubou outros antes.
Num meio
amplo, citadino, a ameaça esconjura-se, neutraliza-se, bastando travar o acesso
a jornais e televisões.
Que o direito a opinar
ninguém o nega, mas ideias desta perigosidade, só em casa, no íntimo, na casa
de banho, enquanto se alivia.
Em meio
pequeno, o problema é bicudo, porque faltando uma difusão diferente, tudo se
processa na oralidade, desde o chamar as cabras a descompor a comadre.
Teve o
senhor prior a ideia de promover reunião alargada, quase ecuménica, englobando tasqueiro,
presidente da Junta e polícia reformado, natural da terra, homem observante dos
interesses de quem manda.
Duas
horas de discussão intensa. Conclusão? Nenhuma, tolhidos pelo diabo da
liberdade de opinião, essência da democracia, que, como tubo de escape, dá
direito de dizer mal de quem se entenda, desde que o visado não tenha bom dinheiro,
que, caso contrário, fica-se com um ou mais advogados à perna, que fazem a vida
negra, porque estes profissionais amam, acima de tudo, o direito e a justiça.
Ora, na
terriola, só a caixa de esmolas rendia magramente e era pertença inalienável do
senhor pároco, que se afirmava sem posses sequer para pintar a fachada da
igreja da Senhora da Agonia, padroeira da zona.
Deste
modo, a única hipótese viável afigurou-se ser a de deixar o Zé zurrar quanto
quisesse, na esperança que se cansasse. Para fazer o ponto da situação, como
sói dizer-se, marcaram, no entanto, uma nova reunião daí a um mês.
Decisão
unânime, com voto expresso de todos os
co-presidentes da comissão de salvação pública, os três, porque sabiam, um pela
prática da tropa, os dois restantes por ilustração, que neste país nunca faltarão
generais, ainda que os soldados não existam.
Trinta
dias depois, uma trágica constatação: o Zé Mendes, o hereje, não calava a
matraca, tornando-se justificado accionar o plano B, que o atacava na vida
pessoal, inventando-lhe podres, desonrando-lhe a família, sussurrando às velhinhas alcoviteiras, em confessionário
ou encontros casuais, que o Zé Mendes recebera lingotes de oiro, de Moscovo.
A
comadre Martinha, amiga, desde catraia, da comadre Zefa, a mulher do Zé,
garantiu, pela alminha dos que Deus lá tem, que a Zefa, muito sua amiga,
compusera o casita térrea com umas notinhas de francos, granjeadas em trabalhos
de caboqueiro, em Franças e Araganças.
Aliás,
desconhecia-se, por lá, o que era Moscovo, onde estava Moscovo, muito embora se
supusesse ser coisa do inferno.
Registando, mais
tarde, novo fracasso nos objectivos em vista, os zelosos defensores dos poderes
estabelecidos desencadearam o plano C, o que é notável, porque se desconhecia,
ainda, as futuras estratégias governamentais. Na boca deles, o Zé era leproso e
ai do pobre incauto que se lhe chegasse.
Foi um azar,
contudo, porque o homem tinha ido pescar, dias antes, com dois parceiros e
aproveitara a tepidez do rio para banhar-se em pelota e os companheiros nada
notaram, a não ser que o Zé estava bem servido, capaz para a mulher ou qualquer
um ou uma mais precisados.
Em
desespero de causa, os co-presidentes agarraram a sugestão do pároco, senhor de
muita inventiva: o Antoninho era uma praga
de Deus.
É
chegada a altura de esclarecer que o pai do Antoninho era o Zé Mendes, que
emigrara em atenção ao filho, um tanto poucachinho, no intuito de o deixar um
tanto amparado, quando a morte os levasse, a ele e à mulher.
E isso,
sim, foi um autêntico achado: pois, a partir de então, a gente da terra, à
vista do Zé, mudava de caminho, evitando o cruzar-se com ele, porquanto quem se
dá com amaldiçoados incorre em maldição, como reza a doutrina da Santa Madre
Igreja.
Quem
viveu o inferno na terra pode arriscar-se à eternidade do Satanás?
Sem comentários:
Enviar um comentário