Confesso estar vivendo acima
das possibilidades.
Sou contínuo de segunda na
portaria do Ministério, onde vejo chegar o senhor Ministro e Secretários que
engraçaram comigo, sabe-se lá porquê, pois, depois dos bons-dias, não deixam de
meter-se com o meu nariz, que, dizem eles, herdei de um avô judeu.
O vencimento é pouco,
descontos feitos, sobretudo agora, em que são muitas as alcavalas, taxas,
sobretaxas e sobre-sobretaxas.
Mantinha-me, ainda há pouco,
na casinha de meus pais, felizmente em vida, mais os pais dos meus pais, os
meus dois irmãos e um rafeiro adoptado.
Apertadinhos, é certo, mas a
casa boa, com quarto de banho e tudo.
Difícil, só à noite, já que para
dormir, é necessário ajeitarmo-nos um pouco, uns para baixo outros para cima. O
espaço vital é, de facto, exíguo.
Tenho leituras, o décimo
segundo ano, ou nunca seria digno funcionário do Estado.
Um dia, estando a ver os
barquinhos no lago do Campo Grande, tão desajeitado fui ao endireitar-me de
repente que dei um safanão valente na pequena que espreitava a diversão por
detrás do meu ombro.
Desfiz-me em desculpas, sem
dúvida, e, preso dos seus olhos pestanudos, fui aguentando a conversa, a ponto
de acompanhá-la quando regressou a casa.
Combinámos outros encontros,
aproveitando os domingos livres que ambos tínhamos.
E a confiança aumentou, mas,
ao cabo de algum tempo, aumentou também a barriga da já minha namorada.
Decidimos, então, juntar
trapinhos.
Andámos os dois à procura de
sítio, mas os preços eram tão incomportáveis que nem alugar um quartinho podíamos.
O tempo começava a escassear,
que, dentro em pouco, os patrões dela notariam que um novo cidadão ia chegar.
Fiz a via-sacra das vitrinas
das imobiliárias, mais os anúncios dos jornais e, a uma sugestão de amigo, sabedor
da vida, abordei o meu chefe, e pedi-lhe que certificasse a minha idoneidade
física, moral, profissional e financeira.
Quis a sorte tê-lo apanhado
de feição e, depois, de papel em punho, timbrado, assinado, chancelado, irrompi
na Caixa Geral de Depósitos.
Não faltaram complicações e
delongas, mas, ao cabo de algum tempo, foi-me concedido empréstimo que me abriu
a porta de um cochicho em Camarate, onde vivemos, eu e a cara-metade e um
catraio, que me dá cabo da cabeça.
Tornei-me, assim,
proprietário, ou, como afirma o governo, meti-me em cavalarias altas, tão altas
que andarei a pagar, a vida inteira, um T1, que acabará por rondar o preço de
uma casa a sério, se eu tivesse, de início, algum dinheiro amealhado.
Se o dinheiro atrai
dinheiro, a pobreza atrai pobreza e exploração.
Mas sou proprietário, com
IMI pago e tudo.
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